Com uma “biblioteca” em mente, Trauma dá cor às paredes do Cine-Estrela — e não só

Entrevista de Andreia Friaças a Trauma, street artist e cúmplice do TODOS em Santa Clara.


Não há estudo prévio, nem treinos no papel. “Chego à parede branca e penso no que me apetece”. É assim que Trauma 21 encara a sua arte — que tem marcado as paredes a norte da cidade de Lisboa.


Chegados à Charneca do Lumiar, no lado norte da cidade de Lisboa, não é difícil encontrar o Cine-Estrela. Este edifício raso e de paredes brancas, que agora parece esquecido, foi um cinema “piolho” nos anos 60. Nessa altura, existiam vários cinemas populares em Lisboa, especialmente nos bairros afastados do centro. Com bilhetes mais baratos, os lugares —  seja no chão ou em cadeiras improvisadas — esgotavam rapidamente para se ver os filmes em reposição que aqui eram exibidos. Como nem sempre tinham boas condições de higiene nem de conforto, estes cinemas ganharam a alcunha de “piolhos”.


Depois do 25 de Abril, nos anos 70, o desenho das cidades mudou e os cinemas “piolho” fecharam portas. Muitos dos edifícios foram destruídos; outros preservam-se até aos dias de hoje. É o caso do Cine-Estrela.


Ao contrário do que pode estar a soar, esta reportagem não é sobre a história do Cine-Estrela — mas sobre quem continua a dar cor a este edifício. Depois de passarmos a porta da entrada, as paredes deste antigo cinema deixam de ser brancas e ganham infinitas cores, espalhadas em diferentes desenhos e letras. Trauma 21 é artista urbano e é entre estas paredes que passa muitas horas.


Se olharmos atentamente, encontramos aqui graffitis de proporções exageradas e escalas disformes; lemos na parede “Trauma” com letras de vários estilos e tamanhos que nunca se repetem. “Nunca tive o mundo realista como inspiração”, garante o artista, que desenha a partir do seu imaginário. “A minha ideia é pensar: “Quais são as regras? Então vamos fazer de maneira diferente para ver como funciona. Enquanto artista, para mim tudo é para ser desafiado”, explica. “Eu tenho uma biblioteca de desenhos na cabeça. Tenho vários olhos, narizes, bocas diferentes que posso fazer e vou construindo os desenhos como se fosse um puzzle”.


Há três anos que Trauma pinta estas paredes do Cine-Estrela. Tudo começou quando o festival Todos chegou à Ameixoeira e organizou sessões de filmes neste cinema em ruínas. Como há muito tempo que procurava um espaço calmo para pintar, Trauma começou a fazer “marcação cerrada” ao Cine-estrela. “Acabava de trabalhar e dava ali umas voltas. Já tinha avisado amigos que se vissem a porta aberta, para me telefonarem”.


Não tardou até encontrar a porta aberta e receber “abertura imediata” para aqui fazer a sua arte. Mas, para estas paredes estarem preenchidas como hoje as vemos, é preciso trabalho. Há ideias que surgem como relâmpagos entre tarefas do dia-a-dia, mas também há vezes em que, mesmo com vontade de desenhar e com uma folha branca à frente, as horas passam e nada surge. “O NERVE [rapper português] diz numa música ‘Eu passo horas a fio a olhar para uma folha em branco enquanto decido qual das vozes da cabeça dou ouvidos antes de pôr mãos à obra’”, cita Trauma. “Comigo é igual”, acrescenta, com um sorriso.


Do quarto para a rua


Trauma cresceu no Bairro de Angola e é aqui, agora com 38 anos, que continua a viver. Ao longo dos anos, guarda memórias da infância passada no bairro: lembra-se de regressar da escola com os amigos, largar a mala e ir brincar para a rua até ser hora de jantar. Andavam de bicicleta, de skate, ou passavam horas a saltar para os montes de areia das casas em construção. Já na sua casa, sempre gostou de desenhar. “Gostava de desenhar. Não gostava de pintar”, explica o artista, recordando o dia em que a sua mãe foi chamada à escola por a professora estranhar os seus desenhos serem sempre a preto e branco. “A professora achou preocupante eu não pintar”, diz Trauma.


Nas férias de verão, recorda as viagens de carro que fazia em família. Foi assim que viu os primeiros graffitis —  além dos que conhecia através de capas de alguns CDs, como o álbum Alternative Prison dos Primitive Reason ou o Significant Other dos Limp Bizkit. Na altura, já gostava da “estética” dos graffitis que encontrava na rua, e aos 12 anos pediu aos pais latas de spray. “Foi assim que estraguei o quarto”, graceja. “Os meus pais ofereceram umas cinco ou seis latas. Naquela altura, era uma caixa grande. Eu tinha de a agarrar com as duas mãos. Hoje em dia, cinco latas… não é nada”.


Em criança, era difícil manusear as latas de spray e Trauma foi deixando este gosto para trás. Anos mais tarde, estudou na escola artística António Arroio e, mesmo nesses anos, estava mais focado na sua banda de hardcore, onde era vocalista, do que no mundo da arte urbana. Acabou por não terminar o ensino secundário e começou a trabalhar desde cedo — primeiro numa oficina, depois no aeroporto de Lisboa e em lojas de videojogos. “Quando comecei a viver sozinho, com 18 anos, tinha demasiadas coisas para fazer. Quando tinha tempo, trazia amigos para casa. Não ficava a desenhar”, recorda. “Só quando entrei na rotina, ir e vir do trabalho, é que procurei voltar a desenhar”, explica o artista. “Na altura, tive uns amigos que começaram a fazer graffiti de rua e disseram-me ‘Não queres vir com a gente?’ e eu alinhei”.


Foi assim que surgiu “o bichinho” — e nasceu o Trauma 21. Porquê este nome? Trauma é uma palavra com pouca tradução —  por exemplo, em Português, Inglês ou Francês, escreve-se da mesma forma. E se olharmos para a palavra ao contrário, fica “amuart”, que foneticamente soa como “amo arte”. Já os números 2 e 1 têm outro significado: representam a segunda e a primeira letra do abecedário: BA, as iniciais do seu bairro, o Bairro de Angola.


Desenho sobre desenho


Há 10 anos que Trauma se tem dedicado ao graffiti de forma mais vincada. A sua inspiração vem de várias frentes: do imaginário dos videojogos, dos desenhos animados ou de filmes de terror. Mas as ideias podem também vir da música — às vezes, basta ouvir uma letra que lhe caia bem no ouvido. Dá o exemplo de uma música do grupo Escalpe, composto por NERVE, Tilt e II-Brutoo, que diz “Torre Tombada”. “Basta ouvir isto e dá-me logo uma ideia”, diz. Apesar de acontecer menos vezes, o rastilho também pode surgir com o que está no mundo. Como aconteceu quando Trauma ouviu uma notícia sobre uma senhora ucraniana que, com o estalar da guerra, deu a um soldado russo sementes de girassol. “Disse-lhe para ele pôr no bolso, que assim quando ele morresse ao menos daria flores”, recorda. “Assim que ouvi aquilo… vi logo a imagem na minha cabeça”, acrescenta.


Tal como acontece no Cine-Estrela, Trauma gosta de desenhar em paredes escondidas, longe do olhar de quem passa. “Eu não tenho a necessidade de fazer graffitis na rua para as pessoas verem”, explica o artista que durante muito tempo pintou sempre na mesma parede, desenho sobre desenho. “A parte que é divertida, que me dá gozo, é a parte em que eu estou a pintar. Depois… o graffiti está só ali parado. Divirto-me mais a fazer do que em saber que o graffiti está numa parede”. 


À parte isso, prefere desenhar num ambiente “confortável e relaxado”. Não gosta de o fazer à revelia, em ruas movimentadas, em que tudo tem de ser rápido. “As pessoas não têm noção mas há graffitis que demoram 2 ou 3 minutos, 5 ou 10 minutos no máximo a serem feitos. É um stress, é o que nós chamamos de missões. O pessoal organiza-se para aquilo acontecer. Eu já experimentei e não gosto do stress”.


Ainda assim, há exceções. Quando se trata de pintar no Bairro de Angola, Trauma 21 gosta de deixar a sua marca. “Estou a pintar mesmo no meu bairro. Todas as pessoas me conhecem, vão passar ali todos os dias. Aí, eu quero fazer uma cena para eles”. Através do projecto Loures Arte Pública, da Câmara Municipal de Loures, o artista já interveio em várias paredes do bairro. Recorda o primeiro trabalho que fez, em que desenhou a frase “Façam favor de serem felizes”, do actor Raul Solnado. Já em paredes mais escondidas, deixa-se deslizar num estilo mais arrojado. Uma das paredes que intervencionou tem agora um boneco de cabeça aberta, com vários objectos a serem disparados —sejam peças de lego, consolas, rádios, diabos a comer gelados ou tentáculos de polvo com anéis de diamantes.


“Eu trabalho sempre em freestyle. Sei mais ou menos o que vou fazer, mas não faço ideia das cores, ou dos desenhos que vão estar à volta. Tudo isso eu decido no momento. Não estudo antes, nem treino no papel. Eu chego à parede branca e penso no que me apetece”, partilha Trauma.


Nestes trabalhos, e principalmente com paredes grandes, é preciso tempo. Uma parede pode exigir trabalho para uma semana, a trabalhar todos os dias desde as sete da manhã às sete da noite. No Bairro de Angola, este processo tem um gosto especial. “Uma vez estava a pintar e um senhor chegou ao pé de mim e disse: ‘saí de casa às 7h30 e tu estavas aqui, agora chego a casa e ainda continuas aqui. Tive de vir trazer-te uma cerveja”, recorda. Numa outra vez, uma vizinha levou-lhe bolinhos caseiros. “Mais à tarde já trago os bolinhos outra vez", repetia a vizinha. “No fim, sentes que o pessoal tem um orgulho em ti”, conta.


O resto vem por arrasto


A forma como a arte urbana e o graffiti são lidos e interpretados em sociedade está em constante mudança. Se nos anos 60, o movimento do graffiti, em cidades como Nova Iorque, consistia em ter jovens e artistas a escrever os seus nomes nas paredes dos comboios em fuga da polícia, agora a arte urbana integra as galerias e museus um pouco por todo o mundo. Em Portugal, é comum os artistas serem convidados por Câmaras Municipais para projectos, organizam-se tours para conhecer a arte urbana das cidades e há cada vez mais instituições e marcas que querem as suas paredes pintadas. “Há mais trabalho agora, tens mais hipóteses de fazer uma exposição”, acredita Trauma, embora defenda que, se não fosse o caminho traçado pelos “que pintavam comboios ilegalmente”, hoje “ninguém estaria a fazer nada disto”.


Ainda assim, o graffiti não é resposta a tudo. “Os bairros ficam mais bonitos? Ficam. Mas porque é que só querem embelezar os bairros pobres?”, questiona. “Há a ideia de que a arte urbana vai mudar radicalmente os bairros. Como são bairros problemáticos, se meterem lá umas cores e uns artistas a pintar, as coisas mudam. Mas não... Dar cor a um bairro não vai resolver nada. Os problemas do bairro continuam os mesmos”, diz Trauma, criticando os projectos das Câmaras Municipais que instrumentalizam os artistas e acabam por não elaborar uma resposta completa e profunda às necessidades dos moradores.


Agora, mesmo a trabalhar numa empresa de logística de transportes, Trauma arranja sempre tempo para a sua arte. “Não quer dizer que trabalhe nisto activamente todos os dias, porque também é uma coisa que se eu for tentar demasiado me vai chatear. Isto é algo que eu faço para me divertir”, defende. “Quando começar a passar seca com isto, quando isto já não for divertido, continuo a fazer o meu trabalho das 9 às 5 e deixo de me chatear”, acrescenta. Por enquanto, sem pressa, vão chegando convites e oportunidades para continuar a fazer aquilo de que mais gosta. “O que eu quero é continuar a fazer os meus desenhos. O resto vem por arrasto”.


 

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