“No futuro, o ideal é a comunidade ser autónoma na criação cultural”

Entrevista de Andreia Friaças a Marisa Farto, técnica de intervenção comunitária no Centro de Desenvolvimento Comunitário da Charneca.


No bairro da Quinta do Reguengo e no Bairro das Galinheiras, na freguesia de Santa Clara, os desafios estão mais que sabidos: muitas pessoas enfrentam dificuldades económicas, têm empregos precários e poucas condições de habitação. Existem obstáculos acrescidos no acesso a transportes públicos, a cuidados de saúde e, claro, no acesso à cultura, à arte e ao lazer.


Perante este cenário, o Centro de Desenvolvimento Comunitário da Charneca, com o apoio do festival Todos, assumiu uma missão: criar os seus próprios espaços de cultura. E mais: que a arte e a cultura fossem capazes de recuperar o sentido de comunidade do bairro — que existia antigamente, quando o bairro funcionava como uma “aldeia” em que todos eram vizinhos.


É com esta missão que, nos últimos anos, se formou um grupo de teatro com os idosos e os jovens do bairro. São espetáculos feitos pela comunidade e para a comunidade — mas também mostram, a quem é de fora, que este bairro existe e resiste.


No ano passado, além do espetáculo itinerante que fizeram pelo bairro, no âmbito do Festival Todos, este grupo de teatro atuou sete vezes no Palácio da Quinta Alegre. Já este ano, o espetáculo repete-se. Marisa da Silva Farto é técnica de intervenção comunitária neste centro há 15 anos. Conta-nos os desafios e as aventuras que aqui se passam, mas também levanta o véu sobre os objetivos dos próximos tempos: tornar o bairro autónomo na criação da arte. É que nada dura para sempre — a não ser a comunidade.


Marisa, como chegou ao Centro de Desenvolvimento comunitário da Charneca [que pertence à Santa Casa]?


Eu cheguei aqui ao mesmo tempo que cheguei a Lisboa. Sou alentejana, de Santa Luzia, concelho de Ourique. Cresci numa aldeia pequeníssima, com, no máximo, 300 habitantes, e vim para Lisboa há 15 anos trabalhar. Vim diretamente para a Santa Casa e para este território.


Atualmente, que actividades decorrem aqui no centro?


O Centro de Desenvolvimento Comunitário da Charneca abriu em 2008 de forma a responder às necessidades da comunidade. Neste momento temos um centro de dia, duas creches e um serviço apoio à comunidade. O que eu posso diferenciar de outras respostas que acontecem na cidade de Lisboa, é que o nosso centro, sendo um centro comunitário, sempre foi muito aberto à comunidade. 


As pessoas mais velhas que frequentam o centro de dia podem entrar e sair quando querem, não têm um regime de entrar as nove da manhã e sair às cinco da tarde. É muito livre. Podem participar numa actividade e ir a casa estender a roupa ou ir às compras, por exemplo. Qualquer pessoa da comunidade pode entrar aqui no centro, beber um café, ler a revista e sair.


Tentámos também que as pessoas mais velhas mantivessem uma relação com a comunidade, de forma a integrá-las melhor na sociedade. Estas pessoas acabaram por criar uma associação com a nossa ajuda. A associação funciona aqui dentro e também é uma resposta aberta à comunidade.


Como disse, um dos objetivos é alimentar a relação com a comunidade. Que actividades fazem nesse sentido?


Antigamente, este bairro envolvente do Centro Comunitário, bem como o bairro das Galinheiras, funcionava como uma aldeia. Nos anos 80, as pessoas vinham das suas terras, de Norte a Sul do país, aqui para a periferia da cidade à procura de melhores condições de vida. E, claro, as pessoas mantiveram, neste bairro, as relações de vizinhança que traziam das suas terras. Portanto, tudo funcionava muito na base destas relações.


Ao longo dos anos, com a chegada de novos habitantes de vários países e de outras zonas de Portugal, estas redes foram-se perdendo. Os mais velhos foram desaparecendo, os mais jovens foram saindo do bairro e foram chegando novas famílias. Nós identificamos que as redes de vizinhança se perderam totalmente. As pessoas já não se conhecem. Nestes 15 anos de existência do centro comunitário, nós conseguimos perceber isso. E, neste momento, os nossos projectos com a comunidade trabalham nesse sentido: criar relações de vizinhança entre moradores mais velhos e mais novos aqui do território. E isto através da cultura e da arte.


Nos últimos três anos e em colaboração com o Festival Todos e o Lobby Teatro, juntámos pessoas mais velhas e mais jovens no mesmo espetáculo. Este ano vamos fazer o nosso terceiro espetáculo, em parceria com o festival. E é assim que estas relações se criam naturalmente. Estes espetáculos, bem como outras acções que fazemos, são sempre com as pessoas do território e para as pessoas do território.


Como é que estes espetáculos podem ajudar na construção de uma comunidade?


Recentemente, ouvimos a opinião das pessoas sobre estes projectos: os mais velhos sentem-se valorizados, sentem que afinal os jovens até têm disponibilidade para eles. Nós e o Lobby Teatro, com estes projectos, e principalmente com o festival Todos, criámos estes espaços de encontro onde as pessoas se podem cruzar. Havendo um objectivo para que estas pessoas se cruzem, estas relações acontecem sem obrigatoriedade. Não sou muito apologista da ideia de ‘vamos fazer uma actividade com os idosos e as crianças e já é uma actividade intergeracional’. Não. As coisas têm de acontecer ao longo dos anos.


No que diz respeito à população idosa, que impacto estas actividades têm na sua qualidade de vida e na sua autoconfiança? 


Estes espetáculos aconteceram logo a seguir à pandemia. No entanto, o teatro já era trabalhado aqui antes. Temos a Joana Brito Silva, que é a encenadora dos espetáculos, é atriz, e já trabalha connosco há alguns anos. Estas sessões, bem como outras acções que desenvolvemos aqui — não só o teatro mas a música, actividade física, Yoga etc. —  faz com que as pessoas mantenham a sua memória activa e o seu tempo ocupado com algo que promove a qualidade de vida.


Com a pandemia, as pessoas tiveram de ficar em casa e o que nós notamos foi que perderem imensas capacidades de mobilidade física, mas principalmente capacidades cognitivas. Todos os anos, fazemos testes com a nossa psicóloga para as pessoas serem avaliadas e concluímos que, ao fim de um ano, depois da pandemia, com a realização destes espetáculos, com os ensaios e com esta rotina que nunca pára, existiu uma recuperação incrível destas capacidades cognitivas. Foi a confirmação de que o teatro e as artes são altamente estimuladores para as pessoas mais velhas — e não só, claro. Para os jovens também.


E estes jovens… como é que participam nestas actividades?


Valemo-nos muito das instituições locais que trabalham connosco, mas o nosso trabalho inicial, há três anos, quando fizemos o primeiro espetáculo aqui no território, foi um trabalho de rua, feito por mim e pela Joana. Fomos para a rua à procura das pessoas. Literalmente. Fomos para o Largo das Galinheiras, encontrámos uns jovens e perguntámos quais eram os seus interesses, o que gostavam de fazer, e eles foram chamando amigos. Como uma bola de neve. Depois conhecemos um amigo de um amigo que tocava viola e gostava de ensinar os outros miúdos a tocar. Então, fizemos aqui umas oficinas de guitarra e danças africanas, facultadas por estes miúdos do bairro para outros miúdos do bairro. Foi assim que fomos ganhando alguns contactos.


E este ano, como vai ser o espetáculo? Qual é o tema?


Este ano a população mais velha está mais reduzida, mas temos imensos jovens, entre os 15 e 20 anos, com quem estamos a trabalhar. Mas sempre numa base de parceria com outras instituições, neste caso a Lugar Comum. O espetáculo vai abordar o contrabando que acontecia antigamente na fronteira de Portugal com Espanha, fazendo o paralelismo com o que acontece aqui no território com os jovens.


Qual é a importância de preservar este sentido de comunidade, como antigamente existia?


Eu nasci numa aldeia e vejo as coisas de outro prisma. Consigo perceber as pessoas mais velhas quando dizem que as relações de vizinhança fazem falta. E estas relações funcionam quase como prevenção da própria vida. É preciso uma rede de apoio primária, em que se um vizinho precisar de alguma coisa, se sentir mal ou tiver alguma urgência, o outro vizinho ajuda e é o primeiro a chegar. As pessoas mais velhas falam muito disso, das relações de vizinhança funcionarem como uma questão de sobrevivência.


Os mais jovens mencionam também a importância destas relações e criticam-se por estarem mais fechados nas redes e tecnologias. Mas assumem que as relações de vizinhança são importantes e também veem isso como algo positivo para as suas vidas.


Ao longo destes anos, houve alguma história, algum episódio, que a tenha marcado em particular?


Tantas. Tantas pessoas que já passaram por aqui. As histórias destas pessoas, principalmente das pessoas mais velhas que estão aqui connosco todos os dias, são muito especiais. São pessoas que vieram das suas terras bastante novas, entre os oito e doze anos, para viver nesta cidade. Algumas pessoas contam que vinham sozinhas, em autocarros ou comboios. Não havia telemóvel: chegavam aqui simplesmente à procura de uma pessoa com camisola amarela, por exemplo.


Estas pessoas vieram à procura de melhores condições de vida. Na altura, vieram “servir”, era o que se dizia antigamente. Foram para casa de outras pessoas para fazer trabalho doméstico. Mesmo sendo apenas umas crianças, construíram aqui as suas vidas do zero. Houve pessoas que residiram em barracas quando vieram viver para a cidade.


São histórias incríveis de sobrevivência. Com fracos recursos socioeconómicos, imaginamos todas as dificuldades que passaram… Ainda assim, tiveram sempre grandes hábitos de trabalho e força para conseguirem criar o que têm hoje: uma vida digna, embora com reformas muito baixas. Muitas vezes, não sabemos como é que conseguem sobreviver. As histórias que eu contaria seriam as destas pessoas —  e são histórias que elas próprias contam.


E estas histórias… já foram contadas em espetáculos?


Sim, já tivemos pessoas a contar a sua história em palco. E temos o privilégio de poder voltar a fazer estes espetáculos. Em Janeiro, vamos voltar a ter o Bate Estradas, o primeiro espetáculo que fizemos para o festival Todos, em que as pessoas contam as suas histórias de vida na primeira pessoa. Não são actores nem actrizes, simplesmente vão contar as suas histórias de vida.


Isto serviu para que as pessoas, fora da comunidade, conhecessem as pessoas que aqui residem. Às vezes a comunicação social passa uma ideia errada do que são os bairros periféricos da cidade. Acham sempre que tudo é mau — mas não é. E estes espetáculos serviram para dar a conhecer estas pessoas e para dar a conhecer este lugar da cidade que não é visto — e que existe.


E aqui no centro, quantas pessoas recebem todos os dias? 


O centro de dia, que agora se chama Espaço InterAge, pode receber pessoas de todas as idades — mesmo para fomentarmos estas relações intergeracionais — e temos à volta de 60 pessoas. Nas creches, que vai dos 0 aos 3 anos, temos cerca de 80.

Mas tentamos que todos os espaços do centro sejam acessíveis a todas as pessoas. Se os meninos querem ver os periquitos que estão no bar podem circular a qualquer momento — devidamente acompanhados porque são muito pequenos.

Se um idoso quer ir ao recreio, também o pode fazer.


Fomentamos isto o máximo possível, por isso fizemos a criação do galinheiro, da horta, do espaço das creches, das cozinhas de lama. A nossa creche funciona com um modelo pedagógico muito aberto, chamado HighScope, que tem a ver com a liberdade que se dá à criança para escolher aquilo que deseja fazer ou brincar. Para isso, as Educadoras utilizam muitos materiais de fim aberto. Madeiras, caixotes, materiais reciclados, garrafas. Tudo é usado para brincar.


E têm uma ligação à natureza, ao brincar na rua, ao brincar com a terra. É assim que surgem as cozinhas de lama. As pessoas mais velhas ajudaram a construir: com umas paletes, foram criadas umas cozinhas em que as crianças têm tachos e talheres que os avós enviaram de casa, e podem brincar aqui.


No galinheiro, há uma história engraçada… com o 38, não é?


O 38 foi um pintainho que nasceu na mão de uma colega, a Carina. Ela pensou que o ovo já não ia eclodir… De repente ele começa a bicar o ovo e nasce mesmo na mão dela. Nesses dias, o Benfica tinha sido campeão [conquistando o seu 38º Campeonato Nacional] e o pintainho passou-se a chamar 38. Como a mãe galinha estava a rejeitar os pintainhos, a Carina ficou a tomar conta dele.


O pintainho andava sempre aqui nos corredores, sempre atrás da Carina como se fosse a sua mãe. Agora, o 38 é um galo e vive aqui no nosso jardim. Às vezes vem para as salas do centro de dia porque os idosos o vão buscar. Adora miminhos e salta logo para o colo.


E que planos tens para o futuro deste centro? O que está por fazer? 


Nós iniciámos este trabalho dos espetáculos, do teatro e a arte com a vinda do festival Todos — que agora está de partida. No entanto, não nos deixamos ficar e já participámos este ano no BIPZIP com o Lobby Teatro e parece que estamos muito bem cotadas com o nosso projecto. Estamos com a quarta melhor pontuação.


No fundo, queremos manter as dinâmicas que já estão a acontecer. Com o festival Todos, com o Lobby Teatro, com a Câmara Municipal de Lisboa, com o Palácio da Quinta Alegre, e com estas parcerias que se foram criando, queremos mesmo manter este trabalho.


O desejo seria que um dia a comunidade fosse autossuficiente e autónoma na criação daquilo que estamos a fazer aqui. Esta nossa candidatura já tem o objectivo de formar pessoas da comunidade para que depois continuem esse trabalho, de forma a que aquilo que andamos aqui a fazer seja sustentável no futuro. As instituições não duram para sempre, os projectos não duram para sempre, os financiamentos não duram para sempre. O ideal seria a comunidade, no futuro, ser autónoma na criação cultural.

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