REAPARIÇÃO DO ESTRELA

É um destroço – restos de um navio chamado Estrela num mar chamado Campo das Amoreiras. É a remanescência de um edifício que o tempo fez desmoronar, porém não completamente, longe disso, porque o esquecimento, quando interrompido no seu sono, é uma fonte inesgotável de memória, a partir da qual «cada um grita a sua verdade». A ruína do Cine-Estrela é uma entrada para um passado onde podemos ouvir, com grande limpidez se escutarmos muito bem, todos esses rumores, por vezes contraditórios entre si. Vozes, inquietas, ainda, gritando palavras e sons que começam por parecer indistintos mas que depois se vão tornando tão perfeitamente claros. Uma multidão de vozes, ali jazendo enquanto vão lembrando (sobretudo a si próprias) que ainda existem: na memória de muita gente, que é quanto basta, persistindo com certa obstinação para além do desaparecimento disso que ali foi e as originou – como por exemplo a moldura onde outrora se projetavam as películas que o Cine-Estrela exibia. Películas que foram sendo inventariadas e que integrarão futuramente uma programação de cinema.

 

            Texto de Sarah Adamopoulos

            Fotografias de Beatriz Pequeno

 

            Imaginemos que, por processos misteriosos vedados ao entendimento mais comum das coisas, um antigo cinema de Lisboa fosse objeto de uma reaparição. Ora, é isso mesmo que tem vindo a acontecer desde a preparação da edição de 2021 do Festival TODOS, quando Raquel Belchior, chegada ao TODOS pelas portas e travessas dos acasos felizes, olhou um dia para o Cine-Estrela e se pôs a sonhar. Desse sonho nasceram um texto muito belo (sob a forma de um solilóquio) e uma performance muito poética, criados para fazer ressuscitar um lugar a rebentar de memória(s). Tudo começou quando Raquel reparou na rua onde ficava o Estrela. Uma rua que é uma frente de pequenos edifícios de alturas quase equivalentes entre si, nascida num passado já distante, quando a rua olhava para um aterro onde mercados e circos eram montados e desmontados. Hoje, a rua olha para um enorme parque verde. “Quis perceber o que havia sido este lugar, e para isso precisava de ir falar com as pessoas que o conheceram. Convidei a Ana Lúcia Palminha, atriz, convidei a Vanessa Amorim, antropóloga, e também o Luís Valdir, arquiteto, e o João Neca, que fez a edição sonora.” A que mais tarde se juntaram três outras atrizes mais jovens, e também RAF (Rui Ferreira), writer que frequentou o Cine-Estrela nos anos de 1990 e que fez um graffiti em tempo real durante o espetáculo A Céu Aberto, apresentado em 2021 no Festival TODOS.

            Este ano, à equipa de Raquel Belchior junta-se um novo parceiro: Sérgio Marques, programador de enorme inventividade, ligado à memória do cinema em Portugal – muito particularmente à memória dos antigos “piolhos”, as salas de cinema do povo, com bilhetes mais baratos e cadeiras de pau, que exibiam filmes em reposição, por  vezes em sessões duplas ou contínuas, e também fitas em partes, as séries da época. Sérgio Marques construirá uma programação de cinema para o Cine-Estrela, estabelecendo uma relação entre essas escolhas e o  trabalho de Raquel Belchior.

 

            Evocação

            Memória: eis a palavra mais importante deste projeto. Enquanto recolhia testemunhos, Raquel Belchior andou a ler textos teóricos, de pensamento, sobre o trabalho da memória, sobre a sua recolha e usos, as suas formas, objetivos, razões de ser, zonas cinzentas, ou então obscuras. A capacidade de pensar o lugar foi determinante no processo a que Raquel Belchior se abalançou. Muitas perguntas emergiram: Aquilo era mesmo uma comunidade ou seria ela que estava a tentar criar uma realidade artificial que servisse o seu empreendimento antropológico e artístico? Uma forte preocupação ética subjazeu – e subjaz – a um processo intenso iniciado em Maio de 2021 e cuja pesquisa foi somente interrompida tardiamente, já por alturas do ensaio geral do espetáculo A Céu Aberto. “Nós estávamos a ensaiar e as pessoas batiam à porta, e entravam, e contavam histórias que nós ainda não conhecíamos”, e por isso parecia que o processo nunca teria um fim, e que a ruína do Estrela era apenas a ponta de um novelo enorme, que mais tarde poderia servir para tricotar algo novo: uma nova leitura, uma nova visão – necessariamente subjetiva, parcial e inescapavelmente incompleta. Uma camisola nova.

            Essa coisa nova será usada como matéria-prima para a criação de um novo espetáculo que poderá ser visto (mas talvez, e sobretudo, sentido) na edição de 2022 do TODOS. De vertente também documental, mas nem só. Raquel não esquece: “Acima de tudo o que eu estou a fazer é teatro. Estou no campo de exploração das emoções, para criar um imaginário. Porque se o público não receber um imaginário, eu terei estado a documentar para quê?” Assim, a criadora “não quis recriar uma hipótese verosímil de Cine-Estrela. Quis antes criar uma atmosfera, que proviesse das vozes e do emaranhado de contradições que fui encontrando nos vários testemunhos que recolhi. A única coisa que era igual, em todos os discursos sobre o Cinema, era a descrição do espaço físico. As pessoas descreviam o mesmo lugar, independentemente das gerações.”

            Já os filmes que o Estrela exibiu é outra história: alguns afirmaram ter ali visto filmes que outros asseveraram jamais ter sido avistados – e muito menos vistos – naquele lugar. “Não há uma verdade. E não é a verdade que interessa, no fundo.” Pois não. O que interessa é a memória. O mecanismo da memória. A construção que é a memória. A memória, sempre emotiva, frágil, incerta, de possibilidades infinitas. Feita de lembranças multiformes, por vezes dolorosas. Durante o processo de criação do projecto A Céu Aberto, Raquel Belchior descobriu que nem toda a gente tinha boas memórias do Cine-Estrela. Que há pessoas que têm a memória magoada e um sentido de perda muito grande relativamente ao território. Pessoas que ficaram num lugar que se foi transformando, pessoas-árvores a assistir a sucessivos arrancamentos das suas raízes. A palavra Charneca, por exemplo, é uma raiz que se perdeu quando o lugar foi renomeado. “Por vezes essas pessoas não queriam falar sobre o Cinema – porque precisavam de falar de outras coisas”. E por isso era preciso estar muito vigilante relativamente à possibilidade (sempre a postos, ali a apelar ao sentimento) de resvalar para uma memória romantizada.

            Se “a ruína do Estrela é um lugar de utopia”, onde no ano passado um anjo da memória (Ana Lúcia Palminha) esvoaçou levada pelo sonho de Raquel Belchior, este ano o Estrela reaparece, uma vez mais a céu aberto, para falar com arte de uma comunidade a fervilhar de memória.

 

            Raquel Belchior (Lisboa, 1983) é produtora independente, licenciada em Produção de Teatro pela ESCT e mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação pelo ISCTE.  Frequentou o curso de Estudos Teatrais na Universidade de Évora e estagiou n'O Bando. Co-realizou o documentário Movimento Zebra – Uma Ocupação Teatral. Fez o curso de Documentário do Kino-Doc. Fez a direção de produção e pesquisa da série televisiva Histórias de Mar. Foi responsável pela criação e produção de Pelos que Andam sobre as Águas do Mar, um projeto de teatro-documentário. É coautora do livro Pelos que Andam sobre as Águas do Mar – Notas de um processo artístico e antropológico. É produtora do projeto de teatro comunitário Ouvir o Mar Daqui. Assumiu a coordenação de produção dos espetáculos do Teatro O Bando no Festival TODOS nas edições de 2019 e 2020. Como produtora executiva, colaborou com vários artistas e companhias de teatro. É cofundadora da editora Galateia e faz parte da Ordem Meteórica – Associação Cultural. Fez a direção artística do espetáculo A Céu Aberto no Festival TODOS de 2021. É produtora e assistente de programação do FIAR – Festival Internacional de Artes de Rua.

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