BAIRRO-ABRIGO, Memórias Debruçadas à Janela

Texto de Sarah Adamopoulos

Fotografia de José Pedro Nunes


Dona Filomena, senhor Mário, Helena, Kumba, Dona Adelaide, André, Asha, Ashwen, Paula, Aires, Edgar, David (Noiserv), Ana Raquel, Pedro, Maria João, Miguel, Alice e muitos outros construíram juntos novas memórias para Santa Engrácia, um bairro cheio de passado. Antiga freguesia de Lisboa, extinta em 2013, foi morada de muitos, tendo em tempos constituído uma das mais densas zonas populacionais da capital, pela ocupação residencial que ali foi feita pelos operários das indústrias sediadas junto ao rio: os terminais portuário e ferroviário, que ficavam à distância de uma descida. 


Na tarde de 19 de Setembro de 2020, entre as 15h e as 17h, das janelas das suas casas os moradores das ruas, pátios, calçadas e seus gavetos, arrabaldes e cercanias adjacentes de uma parte do grande e velho coração da cidade de Lisboa poderão ver Bairro-Abrigo, um espectáculo de rua criado com e para eles, a partir de uma intervenção comunitária de muitas semanas junto dos residentes. Um espectáculo-viagem por memórias e esquecimentos emotivos. 


Ao cabo de meses a caminhar pelas ruas e histórias de vida deste pedaço da cidade, Alice Duarte encheu-se de felicidade por processo empático com a felicidade que viu cintilar nos olhos dos moradores que aceitaram fazer parte deste projecto. Nas memórias e esquecimentos de quem ali vive, Alice encontrou a matéria-prima de que precisava para, paciente e amorosamente, construir o momento que celebra os diferentes encontros entre os artistas e os moradores. 


Assim, Bairro-Abrigo representa o culminar de um processo: o do encontro, sempre imponderável, com os caminhos da memória de uma comunidade, na premissa de um compromisso de genuinidade entre os artistas e os habitantes desse território. Em lugar de uma ficcionação, que a riqueza das pré-existências demonstraria despicienda, construiu-se uma narrativa poética mas, necessariamente, também documental, por tudo o que Bairro-Abrigo levou a desocultar. A realidade é sempre poderosa – eis um dos novos 'mandamentos' das actuais abordagens performativas, que trabalham na intersecção virtuosa entre a arte e os levantamentos junto das comunidades.


Bairro-Abrigo começou quando Alice Duarte lá chegou a querer saber tudo e todos abraçar. Até porque as histórias do bairro extravasam o próprio bairro: há entre as memórias que Alice e a sua equipa resgataram ao esquecimento coisas tão longínquas (culturalmente, sobretudo) como um casamento no México. “Neste bairro há este mundo, o que é visível, e há muitos outros mundos, muito distintos entre si também.” Mundos insuspeitos, que se constroem ao abrigo dos olhares.


Alice contou que enquanto pesquisava houve quem contasse tudo e quem se fechasse em copas. Quem ajudasse muito a mostrar quem são as pessoas do bairro, quem as fosse buscar pela mão, quem fosse tocar às suas portas, quem fosse capaz de resgatar algumas ao mais abrigado recato onde todavia fervilhavam vidas inteiras com passados a gritar que existiam. Alice também conheceu pessoas quando ia a andar na rua e as abordou, e depois falaram até o bairro sossegar. Essas pessoas levaram-na a outras pessoas do bairro. Dentro, ou então ao lado de cada pessoa, havia outras pessoas, vidas, histórias. 


Mas para além de quem vive nesse lugar de limites um pouco imprecisos – um território que é a um tempo de fronteira, de confluência e de passagem –, foi preciso conhecer o território, apreender as suas características – topográficas, arquitectónicas, sociológicas, tudo o que lá se passa e passou, tudo o que resistiu ao tempo e ainda pode ser visto, tudo o que pode ser repetidamente ouvido (o autocarro 735 a resfolegar pesado debaixo do sol, por exemplo), e também muito do que não se sabia, do que estava ocultado por detrás de muros, a memória de antigos acontecimentos, caminhos e lugares entretanto desaparecidos, como por exemplo Vila Macieira, antiga morada dos trabalhadores de uma fábrica de pólvora demolida em 2015.


Ashwen, um menino nepalês que reside no bairro, transformou-se no primeiro bibliotecário do lugar, por agora consistindo a biblioteca numa grande mala contendo livros-sementes que foi pousada numa esquina e deixada aberta para quem os quiser levar para ler. A ideia é criar uma dinâmica de troca: levam-se uns livros por troca de outros que se depositam na mala aberta ao Mundo. Ashwen disse-me que era só o “segurança” da biblioteca, isto é, o seu guardião. Mas imaginar uma nova biblioteca de Lisboa que nasce às mãos de uma criança nepalesa (junto ao salão de beleza da sua mãe, Asha) é uma visão que demonstra a que ponto a Lisboa vista pelo TODOS é uma cidade na qual cabem todos os que a habitam, independentemente de onde provenham. Essa biblioteca vai continuar para além do TODOS. Talvez possa ser o começo de um fundo bibliográfico onde a população poderá encontrar livros em várias línguas.


Bairro-Abrigo tem um camarim ao ar livre que é um pátio onde dorme uma pequenina parcela da memória do Quartel de Sapadores – onde antigamente ficava a Escola Prática de Transmissões, cuja participação nos eventos de 25 de Abril de 1974 foi determinante. É aí que os artistas se vão reunir, dispersando-se seguidamente pelas ruas onde o espectáculo acontecerá para o público que assomar à janela e/ou ocupará as varandas (espécie de camarotes de um teatro sem plateia).


Subtilmente evocando, com amor e arte, não apenas os caminhos do passado como as muitas semanas de convívio entre os criadores e os residentes, os artistas terão ainda por público os familiares dos moradores, os seus amigos, os que se deslocam ao bairro para ir trabalhar, e ainda, inevitavelmente, os que nessa tarde acidentalmente por ali passarem, à hora certa e no lugar certo para um encontro transformador, ao menos desse dia das suas vidas: os transeuntes. Porém, e para evitar aglomerados de gente durante um período que ainda é de controlo da pandemia, as moradas onde acontecerá Bairro-Abrigo (prudentemente concebido para ser visto da janela e da varanda) não serão divulgadas.


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Alice Duarte (n. 1994) é uma pessoa apaixonada pela arte do movimento enquanto forma essencial de expressão, educação e intervenção.

 Licenciada pela Escola Superior de Dança de Lisboa em 2016, tem desde então trabalhado a dança na comunidade com Madalena Victorino. Também produtora em programas culturais e festivais, concebeu e dirigiu artisticamente o Festival VilaPalco – Monchique. Entre outras participações, foi intérprete em Piknik Horrifik (Laika Theatre Company, Bélgica) ou em Pasta e Basta – Um mambo italiano, de Giacomo Scalisi. Criou uma peça de dança afro-contemporânea: AfrikMetrik, para o Boom Festival de 2018. No âmbito do projecto Miragem, co-criou em 2017, com a música Ana Raquel, a peça Cavalo~Marinho, que se encontra em digressão pelo País. Juntamente com Marta Jardim, criou e foi intérprete da peça Alucinação26, um manifesto sobre a emigração jovem. Leccionou dança criativa no Algarve e em  Lisboa e é actualmente professora de Técnica de Dança Clássica na LXDance, em Lisboa. 



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Ana Raquel (n. 1990) tomou-se de amores eternos pelo saxofone desde muito cedo, instrumento que estudou no Conservatório Regional de Palmela, depois na Escola de Música do Conservatório Nacional, ingressando uns anos mais tarde na Escola Superior de Música de Lisboa e aí concluindo o Mestrado em Ensino da Música em 2014. Como não se consegue aguentar muito tempo com os pés na terra, pousou durante um tempo em Milão, no Conservatorio di Musica Giuseppe Verdi. Foi depois disso professora de Saxofone e Música de Câmara na Escola de Artes do Alentejo Litoral. Com Madalena Victorino co-criou Rastilho, Evaporo#2, ou ainda A Grande Viagem do Pequeno Mi. Em Vale dos Barris, com o Teatro O Bando, foi actriz e música em Pássaros. Como saxofonista, e entre outras formações, integra a banda não simão e a Orquestra Vicentina. As únicas certezas que tem é que a música é um dos bens mais preciosos para transformar a sociedade e que a sua missão na vida é ir além das fronteiras do pensamento a galope da música.


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Pedro Salvador (n. 1976), músico, compositor e performer, licenciou-se em Estudos Teatrais pela Universidade de Évora em 2007. Desde então vem explorando o trabalho do músico/perfomer no contexto da dança e do teatro, e o papel das artes performativas junto das comunidades que necessitam com premência de acompanhamento e de um pensamento activo e construtivo. Com Madalena Victorino, dirigiu e interpretou a trilogia Companhia Limitada (2012 a 2016). Entre muitas outras criações, e em diferentes funções, participou em A Vós (2010), de Ainhoa Vidal, ou em Volta (2019), de Aldara Bizarro. Para o Festival TODOS, criou os concertos ao domicílio (2018 e 2019), destinados às pessoas que não podem sair de casa, o concerto móvel com o projecto musical Hill’s Union que levou à enfermaria do Hospital dos Capuchos em 2017, e compôs Plano Sonoro (2011), Sons da Matimar (2012), ou ainda Orquestra de Guitarras (2016), entre outros. Foi co-criador e/ou intérprete em Portugal Não é Um País Pequeno (2015), Amores Pós-Coloniais (2019) ou ainda Agora Que Não Podemos Estar Juntos (2020).

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