De escova e lima, Soraia Corneta quer dar uma nova imagem à Ameixoeira

Entrevista por Andreia Friaças


Como mulher cigana, Soraia Corneta sempre caminhou sozinha. As reguadas nas aulas, a batalha para continuar a estudar, a discriminação em todas as frentes. Nada impediu Soraia de alcançar os seus sonhos. Sempre quis “criar algo para o bairro” e “aproximar a comunidade” — e tem recolhido cada vez mais sorrisos.


Desafiada pelo TODOS a ser o rosto mediador na missão de fotografar as comunidades portugueses de etnia cigana do Bairro da Ameixoeira, formou equipa com a fotógrafa Pauliana Valente Pimentel num trabalho fotográfico a revelar ao público no TODOS ‘23.


No lado mais a norte da cidade de Lisboa, fica o bairro da Ameixoeira, na freguesia de Santa Clara. Por cá, tanto percorremos ruas longas e largas, com prédios atrás de prédios, como nos deparamos com descampados que parecem esquecidos. É nesta desarmonia que nasceu este bairro. Nos anos 90, foram aqui construídas zonas habitacionais para realojar as pessoas que, por toda a cidade de Lisboa, viviam em barracas de lata, madeira ou tijolo.


Aqui chegados, poucos se conheciam. Habituados a bairros de casas térreas, à altura das pessoas, em que não se precisava de levantar o pescoço para ver os vizinhos à janela, a população estranhou a escala, a forma e o desenho destes novos bairros de realojamento, acabados de construir. Os prédios altos, as áreas muito concentradas e a desconfiança das pessoas impediam o convívio, é certo, mas, mais cedo ou mais tarde, este bairro foi ganhando pulsação. Passadas décadas, hoje, quando aqui passamos, sentimos que cada rua está carregada de vida e histórias — e só precisamos de estar atentos para as conseguir ouvir.


Soraia Corneta é uma destas histórias. Junto ao Centro de Desenvolvimento Comunitário da Ameixoeira (CDCA), há vizinhos que conversam entre sombras, para fugir ao sol. Soraia passa pelos vizinhos num rodopio: ora recebe as pessoas à porta do Centro, ora vai chamá-las a casa. “Não se esqueça de que daqui a meia hora tem de estar cá em baixo”, avisa a jovem da rua.


É este frenesim que Soraia queria trazer para o bairro da Ameixoeira, onde vive há 20 anos. Depois da pandemia da covid-19, sentia que as ruas se tinham tornado mais silenciosas. “As pessoas começaram a passar mais tempo em casa. Deixou de existir aquele convívio de as pessoas estarem na rua”, nota a jovem, de 29 anos. Diante este cenário, surgiu a inquietação. “Eu queria mudar isto. Queria criar algo para o bairro, aproximar a comunidade. E pensei… O que é que eu posso oferecer?”.


Desta pergunta, nasceu o seu projeto de Cabeleireiro Solidário. De 15 em 15 dias, numa das salas do CDCA, faz trabalhos de cabeleireiro e manicure às pessoas do bairro, de forma gratuita. “O projeto serve para ajudar as pessoas, aumentar-lhes a autoestima. Quero ver as pessoas a sorrir”, diz Soraia. Ainda tudo está no início, mas já é possível ver a transformação. “Temos aqui uma senhora que não pintava o cabelo há muito tempo, cortar muito menos, e como tremia muito das mãos já nem cortava as unhas. Veio cá com a autoestima muito em baixo, falava muito baixinho. E depois saiu daqui totalmente diferente, com um sorriso, a falar com as pessoas”, exemplifica.


Além dos moradores que recebe no Centro de Desenvolvimento Comunitário da Ameixoeira, muitas vezes Soraia faz o seu trabalho na casa das pessoas, quando se trata de residentes que estão acamados. “Sinto que estou a fazer algo de bom”, reforça a jovem. Mas, se agora há moradoras que já não dispensam estes serviços, no início foi uma batalha conseguir convidar as pessoas e conquistar a sua confiança. “É que eu sou uma mulher cigana”, explica Soraia. “Nem sempre lidavam bem com isso. Umas pessoas sabiam, outras não sabiam. Mas isto é uma coisa que não se esconde”.


“Deitar fora os meus sonhos”


Conquistar a confiança das pessoas não é um exercício novo para Soraia. Sempre teve de lutar sozinha por aquilo que queria e, hoje, é com orgulho que nos diz que foi a primeira pessoa da sua família a entrar na universidade. “Foi um sonho realizado”, afirma. Desde pequena que via séries que se passavam nas universidades e foi ouvindo as pessoas a contar as histórias e aventuras que lá aconteciam. “Eu tinha muita curiosidade em ir. Mas sabia que, para mim, para um dia conseguir entrar na universidade, ainda tinham de passar muitos anos”.


Os obstáculos começaram desde o início. Na escola primária, lembra-se de a professora a chamar ao quadro e dar-lhe reguadas na mão. “Era a única da turma que levava. Era a única cigana”, reforça. Quando terminou o 4º ano, a família retirou-a da escola. “Quando nós começamos a crescer, a ser mulheres, o corpo começa a desenvolver e tiram-nos da escola”, explica.


Só passados três anos — e por imposição do tribunal — Soraia regressou à escola, para integrar uma turma de 5º ano. Mas tinha uma condição: passar os intervalos e almoçar na escola sempre com os seus primos. Também era obrigada a ir e regressar da escola com eles, que estavam noutra turma — e mesmo que os horários não coincidissem, Soraia tinha de esperar pelos primos para sair da escola. “Às vezes eu vinha da escola com os meus colegas, as minhas tias viam e diziam logo ‘Soraia, não podes descer com esses meninos’”, recorda. “Sempre houve muito cuidado com as ‘meninas’”, acrescenta.


No final do 5º ano, foi novamente retirada da escola. Conseguiu voltar a estudar anos depois, através de um projeto do CDCA de educação para meninas ciganas. “Eu sempre quis estudar. E também sabia que sem 9º ano nunca arranjaria um emprego”, defende Soraia que só em 2021 conseguiu terminar o 12º ano, com o curso de cabeleireiro. Mesmo assim, teve de interromper o curso a meio por causa da morte do seu pai. “As pessoas da comunidade diziam que eu não estava boa, que estava a abandonar a minha mãe para ir estudar”, justifica. E, com receio de a jovem ganhar “má fama”, a família também a incentivava a deixar as aulas. “Diziam-me ‘não vale a pena ires. Se queres dinheiro eu dou-te. Vais trabalhar para a feira. Larga isso’”.


Para Soraia, foi preciso muita resistência para terminar o 12º ano. “Tudo o que eu vivi foi sempre para deitar fora os meus sonhos, os meus projetos. Tive de lidar com muita coisa. Mas precisava de lutar por mim mesma”, afirma. Depois de completar o ensino secundário, tentou várias vezes, durante a pandemia, entrar na universidade através do OpréChavalé  — projeto da Associação Letras Nómadas e da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, que visa integrar a comunidade cigana no ensino superior. “Quando surgiu a possibilidade de entrar na universidade, foi um pulo muito grande. Para mim foi logo um sim, apesar de saber que tinha de conversar com a minha mãe e a minha família, mas foi logo uma alegria enorme porque ia realizar aquilo que eu sempre quis”.


“Prefiro não me lembrar”


Ao longo da nossa conversa, numa das salas do Centro de Desenvolvimento Comunitário da Ameixoeira, perguntámos a Soraia sobre as dificuldades que continua a sentir, enquanto mulher cigana. Ficámos alguns segundos em silêncio. “Dificuldades… Continuam a existir muitas dificuldades”, começou por dizer. “Eu é que finjo que não as entendo”, completa.


De fora, por parte de académicos e ativistas, recebe elogios por estar a “estudar e a quebrar barreiras”. Mas cada conquista tem o seu peso: continua a receber desconfiança e comentários dentro da comunidade cigana — que muitas vezes recaem sobre a sua mãe — mas também sente   discriminação por parte de outras pessoas. Sente os olhares desconfiados em supermercados, cafés, nos hospitais ou mesmo na rua. “Sentia mais quando estava de luto do meu pai e estava vestida de preto. Às vezes eu já nem ia a sítios porque sabia que me iam rejeitar. Já sabia que não valia a pena ir. Preferia não confrontar”.


Mesmo fugindo ao confronto, Soraia passou por várias situações. Quando fez um estágio numa cozinha, sentiu que as pessoas a começaram a tratar de maneira diferente quando souberam que era cigana. “Não me falavam, mesmo estando à minha frente. Até outras pessoas começaram a notar”. Já nos balneários, quando alguma coisa estava a faltar, os olhares recaiam todos sobre Soraia. “Uma vez uma rapariga não saiu de ao pé de mim até terem encontrado o que lá tinham perdido”, acrescenta. Nos hospitais ou nos supermercados, a situação repete-se. “Já tive uma senhora no supermercado a mandar-se para cima da minha mãe e a dizer que os ciganos são todos iguais”.


Soraia prefere não recordar estes episódios. “Prefiro não me lembrar para não ficar cá dentro. Para não me magoar”. Fugindo às discussões, aos confrontos ou à violência, encontrou a sua própria forma de mostrar às pessoas que estão erradas quando a discriminam por ser mulher cigana. “Prefiro ir quebrando barreiras e mostrando, a pouco e pouco, o meu valor”.


Casamentos e confusões


Os dias de Soraia são sempre ocupados. Além do projeto do cabeleireiro solidário, está a fazer uma pós-graduação em Desenvolvimento Comunitário no ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa, faz parte de vários projetos com raparigas ciganas na Ameixoeira, em que as acompanha na escola, e também trabalha na feira, junto da sua mãe e do seu irmão. Ainda assim, gostava de encontrar um emprego como cabeleireira, e ter mais participação no seu bairro. “Ainda há muito por fazer”, garante.


No bairro da Ameixoeira, e um pouco por toda a freguesia de Santa Clara, há várias comunidades que se confluem. Existe uma forte presença da comunidade cigana e negra, mas também de pessoas que, há décadas, migraram do Alentejo e do norte do país à procura de melhores condições de vida. A diversidade sente-se em todo o lado — e é por isso que neste bairro tanto “há casamentos como confusões”, diz Soraia, com um sorriso. Por um lado, nota as melhorias: as crianças ciganas já se “misturam” mais quando brincam e já vão mais facilmente à escola. Mas os problemas também persistem: há pessoas que não conseguem encontrar uma casa e vivem dentro de lojas, não há praticamente comércio dentro do bairro e os transportes públicos, como os autocarros, também não entram dentro do bairro. “Mesmo as pessoas mais velhas têm de andar muito para apanhar o autocarro”, reforça.


Ao mesmo tempo, a população vai-se sentindo cada vez mais usada. Há projetos que visitam o bairro, recolhem informação sobre as dificuldades da comunidade cigana, prometem mudanças e vão-se embora. “É como se nos estivessem a sugar. Para as pessoas estarem mais inseridas no bairro é preciso dar-lhes a oportunidade de interagir, de partilharem as suas ideias. As pessoas ciganas também têm talentos, têm coisas para mostrar”.


Para quem visita o bairro da Ameixoeira pela primeira vez, Soraia deixa um aviso: “é uma caixinha de surpresas”. “Tanto se podem encantar como ganhar medo. É preciso conhecer, ir descobrindo. O bairro em si é um desafio”, sorri Soraia, que nos últimos meses, fez parte de mais um projeto para dar a conhecer a Ameixoeira. A convite do festival TODOS, juntou-se à fotógrafa Pauliana Valente Pimentel para fotografar as comunidades portuguesas de etnia cigana do bairro. Foi Soraia que convenceu as famílias a abrirem a porta da sua casa e a deixarem-se fotografar. “Quando há um projeto, eu gosto de fazer as coisas com amor. E fazer este projeto foi gratificante. Fotografámos crianças, famílias, as casas, os seus objetos”, recorda Soraia.


Agora, estas fotografias vão estar expostas e trazer mais cor ao Centro Cultural da Ameixoeira. “Gosto de ver a mudança no meu bairro. Gosto de ajudar e de contribuir”, diz Soraia. “Como batalhei muito sozinha, caminhei sempre sozinha, sei que é bom nos ajudarmos uns aos outros”, acrescenta. E com todas estas conquistas, Soraia guarda entusiasmo para o futuro. Quer conquistar outros sonhos. “Mas esses são sonhos que ainda não se podem dizer”.

Partilhar

Contactos

SEDE PERMANENTE

Estrada de Benfica, nº 400

1º E. 1500-101 Lisboa, Portugal

Redes sociais

Newsletter

Notícias Notícias Notícias Notícias Notícias Notícias

Notícias Notícias Notícias Notícias Notícias Notícias

festivaltodos.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile