Entrevista por Andreia Friaças
Há 20 anos, quando chegou ao PER11, tudo lhe parecia estranho: os prédios altos, os vizinhos que não se falavam, as ruas silenciosas. Mauro Wah quis trazer o sentimento de comunidade para este bairro — e começou pelos jovens. Hoje, o PER11 é uma comunidade viva que alimenta os “miúdos” de objetivos.
Mauro é parceiro e amigo do TODOS desde a aterragem do festival em Santa Clara (2021).
- Cuidado com a estrada, Dinis!
O aviso é feito por Mauro Wah, um dos rostos mais conhecidos do bairro PER11, na freguesia de Santa Clara. Foi ele que fez nascer a associação de moradores do bairro. Na Rua Raul Rego, onde fica o espaço da associação, as crianças correm de um lado para o outro, conversam nas mesas do jardim ou jogam à bola no campo de futebol. Mauro, sentado precisamente numa destas mesas de jardim, fala connosco sempre com o olhar mais além, atento às crianças que atravessam a estrada distraídas.
Nascido em Moçambique, veio para Portugal com quatro anos para morar com os seus avós no antigo bairro de barracas, conhecido como Pailepa, em Santa Clara. Mesmo com o passar do tempo, Mauro, agora com 44 anos, guarda memórias frescas do seu bairro de infância: as casas eram térreas, feitas à altura das pessoas, o chão era de terra batida mas a rua servia de quintal para todas as casas. As vizinhas falavam entre janelas. Na sua casa, a mesa estava sempre cheia: aos avós e aos primos, que viviam com Mauro, juntavam-se os seus tios para almoçar aos domingos. “Havia sempre música, havia sempre gargalhadas”, recorda Mauro.
Há 20 anos que vários bairros, como o Pailepa, foram destruídos e os moradores realojados em novos bairros, com prédios altos e áreas concentradas. Estas zonas acabaram por ficar conhecidas como PER — sigla que significa Programa Especial de Realojamento — e cada uma tem o seu número. Este é o PER11. “A minha avó foi das últimas pessoas a sair da Pailepa e a vir para aqui”, recorda.
Apesar de grande parte dos seus amigos terem sido realojados noutros pontos de Lisboa, para Mauro ficar em Santa Clara era “o que fazia sentido”. “Não me estava a ver noutro sítio. Este é o único lugar onde posso dizer que eu sou o Mauro como sou.”
Quando Mauro chegou ao bairro PER11, tudo lhe parecia estranho: os prédios altos, os vizinhos que não se falavam, as ruas silenciosas. “Não via as crianças na rua a brincar, mas nesse tempo também não havia muitos lugares no bairro para a brincadeira”, diz Mauro, que na altura trabalhava no Aeroporto de Lisboa.
Com saudades do seu bairro de infância, Mauro começou a pensar no que gostava de ver diferente no PER11. Queria um bairro unido e que respeitasse a sua diversidade — por aqui, há uma forte presença da comunidade negra, cigana e pessoas migradas de outros lugares do país, como o Alentejo ou o Norte. Acima de tudo, Mauro queria ver as crianças a viver o espírito de bairro e a brincar nas ruas, como acontecia quando era jovem e passavam os dias a jogar futebol ou a aprender, com as pessoas do Pailepa, várias actividades, desde artes marciais à carpintaria.
Foi com esta vontade que Mauro fez nascer a associação de moradores do PER11. E ao contrário do que é habitual encontrar pelo país, esta associação de moradores é dedicada às crianças e jovens.
- Mauro, guardas-me o telemóvel?
A nossa conversa é novamente interrompida, desta vez por uma criança que quer livrar-se do peso que tem nos bolsos para poder ir jogar futebol. Há mais de 10 anos, foi precisamente entre crianças e futebol que esta associação se cimentou. “Eu comecei a pensar naquilo que queria para o bairro e naquilo que mais gostava de fazer… Claro que era jogar à bola”, sorri Mauro.
Depois de muitos anos a ser monitor de colónias de férias em Santa Clara, Mauro estava habituado a lidar com crianças. Quando via os “miúdos” no bairro, como carinhosamente os trata, perguntava-lhes: “Então, vocês sabem jogar à bola?”. E logo acrescentava: “Mas olhem que o futebol não é só chutar à bola”. Para Mauro, o futebol pode “ensinar muita coisa”. “Para jogares tens de ser educado, consciente, tens de saber jogar com os outros, conhecer as suas limitações, os seus pontos fortes. Tens de ter muita paciência”, diz. Ao mesmo tempo, o futebol é capaz de criar amizades e traz objetivos. “Acho que isso é importante para as crianças. Terem um objectivo”, reforça.
O primeiro desafio da associação foi criar uma equipa de futebol do PER11, com crianças dos 6 aos 8 anos. Todas as crianças do bairro estavam convidadas a jogar. “Negros, ciganos ou brancos. Jogava quem queria”, reforça Mauro, que se lembra, com emoção, do primeiro jogo da equipa. Quando estavam a ir para o campo de futebol para jogar pela primeira vez, encontraram pelo caminho a equipa adversária, o Águias da Charneca. Assim que viram os outros jogadores, o espanto foi geral. “A outra equipa tem equipamento a sério!”, gritaram as crianças. “Vamos jogar com uma equipa a sério, vamos jogar com uma equipa a sério”, repetiam. Ainda mais entusiasmados ficaram quando, chegados ao campo, descobriram que também eles teriam um equipamento. “Eles pensavam que iam jogar com a roupa normal e eu também não tinha dinheiro para comprar equipamentos. Mas arranjei uns coletes e com um stencil escrevi em todas as camisolas PER11”, recorda Mauro. “Eles não estavam nada à espera. Ficaram todos contentes”.
Dos matraquilhos aos Santos Populares
- A chave está em cima da mesa!
Volta a gritar Mauro, desta vez para outro jovem que está a entrar no espaço da associação do PER11. Quem por aqui passa, não fica indiferente a esta casa, que ocupa três salas no rés-do-chão de um dos prédios da rua Raul Rego. No contexto de um projeto do festival Iminente, o artista Gonçalo Mar foi desafiado a pintar as paredes exteriores da associação. “Pensámos em nomes, referências, pessoas do bairro para que o Gonçalo as pintasse”, explica Mauro. Ao mesmo tempo, as crianças do bairro também taggavam o seu nome nas paredes. “Não podem dizer que não têm um pouco deles ali”, acrescenta.
Nesta associação, a porta está sempre aberta. Depois de entrarmos, lemos frases de Fernando Pessoa, Antoine de Saint-Exupéry, Luís de Camões escritas nas paredes, mas o que chama mais à atenção é um género de mural com várias fotografias das crianças do bairro. “Esse foi outro dos workshops do Iminente. Foram os miúdos que tiraram as fotografias uns aos outros com uma máquina analógica. Aprenderam a mexer na máquina, aprenderam a revelar”.
Na associação, todos os dias começam com o apoio ao estudo. Têm uma pequena biblioteca e computadores que os ajudam a trabalhar. Depois, podem jogar playstation, matraquilhos ou andar de bicicleta. Até têm uma oficina de bicicletas para quando alguma coisa falha. Na rua, jogam à bola, às escondidas ou ao mata-piolho. “Acho que trouxe muito do meu bairro para aqui”, diz Mauro, com um sorriso.
Quando chega o verão, além dos passeios e visitas pela cidade, organizam os Santos Populares no bairro. Nestes dias, há sempre uma “feira de empreendedores” — em que várias pessoas da Alta de Lisboa mostram os seus negócios, desde a fotografia ao artesanato. Os miúdos do bairro ajudam a organizar a festa e até ficam a responsáveis pelas sardinhas e as bifanas. “Tudo isto é bom para os vizinhos se darem bem. Os miúdos vão levar as sardinhas à casa das vizinhas e elas depois dizem-me ‘o rapazito era muito simpático’”, recorda.
Uma segunda casa
Mesmo nas alturas mais complicadas para o bairro, como os anos da pandemia da Covid-19, a associação nunca baixou os braços. “Tivemos de fechar a porta pela primeira vez. Custou-me muito. Pensava que, sem eles aqui na associação, os ia perder de alguma forma”. Mas, nestes anos de pandemia, Mauro acabou por assumir outro papel. Muitos moradores do bairro, que tinham empregos precários e enfrentavam difíceis condições financeiras, viram a sua situação a tornar-se ainda mais complicada.
Com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa e da Fundação Aga Khan, a associação PER11 fazia a distribuição de alimentos pelos moradores do bairro. “Ganhámos a confiança dos pais, dos avós destes miúdos”, explica Mauro. Também nesta altura, uma vez que muitas crianças não tinham computador, os professores enviavam os trabalhos de casa para o Mauro, que ficava responsável por imprimir as fichas de atividades na Junta de Freguesia de Santa Clara e de entregar aos jovens do bairro.
Mesmo com altos e baixos, 2023 é um ano de números redondos para o bairro: o PER11 faz 20 anos e a associação de moradores já funciona há quase tanto tempo. “Acho que com o tempo fomos trazendo o sentimento de comunidade para o bairro. Para estes miúdos, esta é sem dúvida uma segunda casa”, acredita. Pensando no futuro, questionámos Mauro sobre os projectos, os sonhos, as vontades para os próximos anos. Não demorou a responder. “Gostava que a associação fosse mais sólida em termos de continuidade. Como somos uma associação sem fins lucrativos, às vezes torna-se difícil dar continuidade a projectos que achamos necessários para as crianças crescerem”, critica.
Além de ser necessário mais apoio por parte da Câmara Municipal de Lisboa, Mauro também considera urgente continuar a “agitar” as crianças. “Precisamos de continuar a perguntar às crianças o que é que querem para o seu bairro. Quando os vejo descontentes com algo, digo sempre ‘O que mudarias aqui? Bora lá pensar’”. O seu objetivo é que as crianças sintam que têm uma palavra a dizer sobre o seu bairro. “Se nos organizarmos, podemos fazer propostas à Junta de Freguesia. É importante para as crianças sentirem que o podem fazer”.
Aos poucos, Mauro está cada vez mais próximo do sentimento de bairro e de comunidade que tinha em criança. Agora, olha para o PER11 como um bairro “diversificado”, com “vários ritmos” e, principalmente, “cheio de vida”. De prédio em prédio, de rua em rua, há um sentimento de vizinhança e de comunidade que se está a cimentar. “A associação mostra ao bairro que uma criança, para crescer, não precisa só dos pais. Precisa de toda a comunidade”.
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