O TEATRO-VERDADE DE JOANA BRITO SILVA

Texto de Sarah Adamopoulos

Fotografia de Nicolás Fabian


Num lugar de fronteira entre o campo e a cidade, a ruína de um antigo castelo ergue-se com discreta monumentalidade. Remanescência material de quando o lugar era constituído por quintas e terras senhoriais, testemunha um tempo que os mais antigos de Santa Clara ainda conheceram numa sua forma nobre, atribuindo-lhe grande significado simbólico na memória do lugar. Bate-Estradas, um espetáculo em percurso pedonal, construído com e para a comunidade, vai passar pelo Castelo, na Quinta do Reguengo. Trata-se de uma propriedade privada, hoje ainda parcialmente habitada. No seu interior há hortas que são cuidadas por alguns habitantes da freguesia. É aí, nesse ponto principal do percurso teatralizado, que as madrinhas de guerra vão estar. São as delas, as histórias que deram origem a grande parte da dramaturgia deste espetáculo de teatro documental assinado por Joana Brito Silva (criação e direção), com a colaboração de Margarida Cardeal (apoio à dramaturgia).


“O Castelo é um sítio do qual a comunidade se orgulha, e foi por isso que quis que fosse um lugar central deste projecto. Há inclusive uma associação de idosos que frequentam o Centro de Dia da Misericórdia [cuja designação oficial é Centro de Desenvolvimento Comunitário da Charneca – Santa Casa da Misericórdia de Lisboa] que tem o nome de Castelo da Alegria. Este espetáculo quer também mostrar a ruralidade da cidade, que ainda existe porque muitas destas pessoas trouxeram com elas os saberes do campo. Sabem tratar das hortas, produzem muita coisa para consumo próprio, sabem como armazenar água a partir da chuva … Para além das hortas do Castelo, há muitas mais espalhadas pelo território. A maioria destas pessoas veio sobretudo do Minho e do Alentejo, e acabaram por se fixar, porque as rendas de casa eram mais baratas aqui, numa altura em que a maior parte das habitações daqui eram ilegais.”


Um dia, a dona Gracinda, proprietária de uma das hortas do Castelo, contou-lhe que conheceu o seu marido porque foi sua madrinha de guerra. A partir desse momento, a jovem criadora descobriu que essa era ali uma realidade muito comum: quase todas as senhoras utentes do Centro de Dia da Misericórdia haviam sido madrinhas de guerra. Ainda assim, uma gota de água num imenso mar de afeto à distância que se estima em 300 000 mulheres maiores de 21 anos que se corresponderam com os combatentes portugueses entre 1961 e 1974. “Essas senhoras não se corresponderam necessariamente com os homens com quem vieram a casar, porque nem sempre havia uma ligação romântica, e, em muitos casos, as pessoas nem sequer se conheceram. Fez-me sentido revisitar essas histórias e cartas [os aerogramas do Serviço Militar Postal, então designados por bate-estradas, eram oferecidos aos soldados por uma parceria entre o Movimento Nacional Feminino e a TAP, num volume de envios que terá alcançado os 2 400 000 no decurso da guerra], até porque o nosso passado colonial está muito presente em Santa Clara.”


“O TODOS é um acontecimento que não se limita a passar – há no Festival um ficar, um permanecer, e um objetivo muito forte de criar pontes.” Pontes em todos os sentidos, sendo a transmissão da memória uma das mais relevantes. Por isso, “mais do que criar um espetáculo, interessou-nos perceber onde é que estão as paredes simbólicas que se interpõem entre as diferentes comunidades. Porque apesar de estarem geograficamente muito próximas, há muros mentais entre as pessoas. Nomeadamente entre a população idosa branca e as comunidades africanas negras, que ainda são racializadas. As Galinheiras são um bairro conhecido pelos piores motivos, muitas vezes injustos, porque se associa a atividade criminosa à presença das comunidades negras e ciganas. Efetivamente há assaltos, mas há também uma generalização que é tendencialmente racista. É esse medo do outro, e essa incompreensão cultural, que gostaríamos de transformar em pontes.” Pontes entre pessoas que são, quase todas, cidadãos portugueses de plenos direitos e deveres, importa talvez precisar. 


Antiga voluntária no Centro de Desenvolvimento Comunitário da Charneca, Joana Brito Silva dava aulas de teatro à comunidade idosa do bairro. “São pessoas que dão tudo: contam-me tudo, entregam-me caixas cheias de aerogramas que têm ali coisas muito privadas. Eu costumo dizer a brincar que os aerogramas foram os precursores do Tinder, porque por vezes havia naquelas cartas um discurso muito sexual.” Para além disso, Joana descobriu o medo nas palavras escritas pelos soldados: o medo da guerra, onde “o fogo era real”, como alguns escreviam. O medo de morrer na guerra. “Mas aquilo que pessoalmente mais me chocou foi descobrir a que ponto o patriarcado era transversal.”


“Os aerogramas começavam e acabavam quase todos da mesma maneira: 'espero que este aerograma te vá encontrar bem a ti, a teu pai, a tua mãe, a tua irmã, e que te encontres na companhia deles' (ou seja, que não estejas com outras pessoas), e no final escreviam 'um abraço deste que te ama e não esquece'. As coisas que os homens escreviam às mulheres são hoje impensáveis: 'não uses calças, não cortes o cabelo que eu não gosto, estás muito magra, tens de engordar porque é preciso força para aguentar a lua de mel [!]... E as mulheres eram extremamente passivas e diziam que se eles não gostavam iam mudar... Coisas que nalguns casos ainda se mantêm, talvez de forma dissimulada, ou pelo menos atenuada, mas foi perturbador descobrir a que ponto essa linguagem tão crua, e esses valores patriarcais, dominavam o diálogo entre os homens e as mulheres.”


Joana descobriu também o grau de analfabetismo das pessoas que trocavam aerogramas, as suas. dificuldades com a escrita, que muitas vezes determinava que fossem outras pessoas a escrever as suas cartas de amor, “o que levanta outras questões, e desde logo a da veracidade daquelas palavras, por causa da ausência de privacidade (apesar de os aerogramas não poderem ser fechados, eram umas simples folhinhas desdobráveis que podiam ser lidas por outras pessoas – o que levanta também a questão do controlo da censura do Estado...).” E ainda a natureza das ambições das mulheres daquela época, e o que esse retrato geracional revela: “As preocupações das mulheres eram casar, ser boas donas de casa, comprar os electrodomésticos para a casa, sempre na perspetiva de servir o lar, de ter meios financeiros para o fazer, e isso passava à frente de tudo...”


“Mais difícil foi identificar pessoas de outras comunidades que também vivem aqui. Descobrimos uma grande população cabo-verdiana, para além de são-tomenses e angolanos. Tudo isto num bairro marcado por um grande abandono escolar – e abandono em sentido geral, o que facilita a entrada nos circuitos da criminalidade.” Pessoas que são descendentes daqueles que testemunharam a guerra a rebentar-lhes à porta de casa: “Quisemos incluir na nossa dramaturgia essas duas visões: a de quem ia para a guerra, que ficava longe de casa, mas também a de quem procurou libertar-se dessa guerra, depois de ser surpreendido pelo fogo e de iniciar um percurso de resistência”.


Bate-Estradas conta com a participação de três atrizes e três guitarristas profissionais (habitantes das Galinheiras), a que se juntam cantores e bailarinos (alguns também profissionais ou em processo de profissionalização). Muito motivada para a arte de vertente documental em contexto comunitário, Joana Brito Silva (n. 1994) é licenciada em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema e tem um mestrado em Teatro Aplicado a Contextos Sociais e Educacionais pela Goldsmiths University (Londres).


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