TODOS: A voz doce da diáspora africana

Entrevista de Sarah Adamopoulos 
Fotografia de Nicolás Fabian


Conversei com ela no Campo das Amoreiras, que é agora um vasto jardim mas já foi coisa diferente, um campo aberto, quase aposto que de terra batida, e que hoje se mantém um lugar central de Santa Clara, para onde todos convergem. “Era o sítio por onde toda a gente passava, era aqui que se apanhavam os transportes, e a escola primária que eu frequentava era mesmo aqui ao lado. Brincávamos aqui, apanhávamos amoras, e a junta de freguesia tinha uma banda – a Banda da Charneca. Eu vivia na Quinta da Pailepa, que era um bairro que já não existe, numa casa que ficava não muito longe dos Bombeiros da Charneca, e via a banda a passar, e ficava a ver os meninos a tocar, cheia de vontade de me juntar a eles... Ainda hoje me lembro de algumas músicas que eles tocavam. A música sempre fez parte da minha vida. Os meus pais tinham sempre música em casa.

Em África há música em todos os quintais, na rádio ou ao vivo, com pessoas a tocar.”


“Comecei a cantar no coro da igreja evangélica Filadélfia, na Charneca. Depois, em 1999 conheci o maestro Carlos Ançã, que veio ensaiar o coro da igreja e acabou por me convidar para fazer parte de um coro de gospel que ia formar. Os ensaios começaram em setembro desse ano, e desde esse momento nunca mais parei de cantar. Sou uma pessoa crente, e creio que foi Deus que pôs a música no meu caminho. Eu queria muito cantar, mas o lado espiritual do gospel foi muito importante, porque para além da música era a oração que nos levava a estar juntos para cantar. Não esqueço as noites de vigília. Sim, o gospel é um gesto coletivo religioso antes de mais.”


Até 2012, Anastácia Carvalho teve outras ocupações profissionais não relacionadas com a música. Depois, a música começou a tomar um lugar cada vez maior na sua vida. “Comecei a fazer back vocals para vários artistas, da lusofonia mas não só. Trabalhei com o Rui Veloso, com o Bonga, com o Costa Neto, com a Selma Uamusse... Em paralelo, trabalhei sempre com grupos de gospel. Inicialmente como cantora, e depois como maestrina – faço direção coral do Gospel Collective. Mas a minha primeira banda, fora do gospel, foi uma banda de reggae – os Mercado Negro, entre 2005 e 2012. Também fui fazendo formações na área da direção coral, participei no curso de Vocalizes no Instituto Piaget, em Almada, fiz aulas de canto, guitarra e piano, e iniciei o Curso de Jazz na escola JBJazz Lisboa. Tenho também dado aulas de canto. Ultimamente tenho estado a gravar temas meus, é um processo que leva o seu tempo. Lancei um single ( Saudade , cantado em forro, língua crioula de São Tomé) e espero ter oportunidade de lançar mais música minha e de investir no meu projeto a solo, no qual eu canto em forro, e uso os ritmos de São Tomé, numa fusão com os ritmos de Angola. Angola e São Tomé e Príncipe estão muito ligados, porque no tempo do colonialismo havia muitos angolanos em São Tomé, e por isso a influência da cultura angolana é muito forte.”


Entretanto, Anastácia teve uma experiência diferente de tudo o que tinha vivido até então, quando integrou o grupo que acompanhou Madonna na sua última tournée. “Foram nove meses que acabaram em março de 2020, com o surgimento da pandemia. A viagem começou nos Estados Unidos, onde estivémos cinco meses, e depois seguiu para a Europa. Cada trabalho que faço tem o seu lado especial, e tudo me faz crescer, como pessoa e como cantora, é assim que encaro a vida.”


Anastácia Carvalho (n. 1976) nasceu em Luanda, Angola, mas considera-se são-tomense, pois os seus pais – que se conheceram em Angola, onde o seu pai estava ao serviço da polícia portuguesa – são de São Tomé. Em 1983, a cantora veio para Portugal, depois de quatro anos em bolandas entre Luanda e São Tomé e Príncipe, devido à instabilidade provocada pelo início da descolonização naqueles países. “Havia perseguições, os bens de primeira necessidade eram escassos... foram tempos muito complicados.” Malgrado o relativo conforto que a vinda para Portugal lhe trouxe, Anastácia só conheceu a estabilidade em 1992-93, quando a família se fixou de modo definitivo no País, na sequência da obtenção da autorização de residência. Apesar disso, só em 2008 se tornou cidadã portuguesa. Cantora de enorme versatilidade, com uma voz e uma presença muito doces, características que fazem parte da natureza são-tomense, Anastácia Carvalho é um nome de que vamos ouvir falar cada vez mais. No Festival TODOS deste ano, é ela a cantora convidada da Orquestra TODOS.

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